Avançar para Trás, Recuar para a Frente, Tanto Faz.
Convocar a Arte de Isabel Cabral e Rodrigo Cabral
As obras de arte não se confinam à aparência daquilo que são, daquilo que foram. Não se
fecham. Arquivam-se, armazenam-se, mas não se fecham. O discurso sobre (e sob) as obras de
arte não se esgota: inaugura-se, retoma-se, revê-se, refaz-se, reinventa-se – tendo em mente
que interpretar ou usar são coisas distintas. A arrumação das obras no espaço e no tempo
também (não) é mera comodidade científica, histórica, económica, psicológica, social, política.
E, se tal exercício depende da liguagem, logo é seguro que estará sujeito ao que ela é (in)capaz
de lhe oferecer: a sua própria (in)segurança. As palavras podem dar a ver, mas importa que as
imagens possam continuar a dar(-se) a ler.
A obra de Isabel Cabral e de Rodrigo Cabral está documentada e contextualizada na singular
abordagem de Bernardo Pinto de Almeida, em «Memória do Presente – Passagem de Isabel e
Rodrigo Cabral na Arte Portuguesa» (Afrontamento, 2017); nesta edição, o autor faz o
respetivo enquandramento social, político e artístico, dentro e fora de fronteiras, e dá-nos
conta dos dois tempos do trabalho dos artistas: o tempo em que assinavam individualmente; o
tempo da assinatura coletiva, o do Projeto Comum, começado nos anos oitenta (por
curiosidade, no ano da morte de Warhol, 1987) e desenvolvido até hoje. Os trabalhos aqui
expostos pertencem a esse primeiro tempo.
Isabel Cabral apresenta seis telas pintadas a acrílico. Duas delas compõem um trabalho datado
do final dos anos setenta. N´«A Janela», duas personagens colocadas em primeiro plano, de
costas para o observador, contemplam a paisagem rural versus urbana; a dualidade sai
reforçada pelo facto de as duas personagens partirem de uma só figura, composta por
simetria. Enquanto na versão citadina a personagem entra no jogo das opacidades, na
paisagem campestre é atravessada pelo jogo de transparências, no ensaio de uma osmose.
Agora a pose: «mãos nas ancas» é, para Desmond Morris, atitude passível de sugerir um
comportamento autoprotetor e anti-social, bem como de sinalizar “um abatimento
embaraçoso”. Eis aqui um sinal.
Esta(s) pintura(s) sugere(m), à cabeça, o pano de fundo reativo da obra de Isabel nesse período
que antecedeu o trabalho coletivo dos artistas. O encanto-desencantado perante o estado de
situação, o entusiasmo-dececionado diante da promessa de qualidade de vida, o otimismo-
angustiado com a revolução-evolução em curso. Diríamos muito prosaicamente que a pintora
nos leva em visita guiada, através de pistas-sinais-signos, numa agenda de preocupações
territoriais, ambientais, sociais, políticas. Fechadura, Interruptor, Porta Aberta, Retrovisor oferecem-se-nos como mnemónica que mantém a nossa febre metafórica em níveis razoáveis,
sem alucinação nem espetáculo.
Rodrigo Cabral expõe seis desenhos a lápis de côr sobre pano. Poderíamos aqui aproveitar o
contraste técnico para anotar a confessada ligação de Rodrigo ao desenho e de Isabel à cor. E,
já agora, também a poli-valência de ambos na experimentação ativa e multidisiplinar – pintura
e escultura, performance e instalação, arte postal e poesia visual. O espaço concetual,
processual e plástico de Rodrigo configura um jogo programático e multirreferencial. A ligação
à Arte Pop é apenas uma entre as diagnosticadas. Numa informada e inconformada relação
com as regras do jogo – as do seu e as dos outros – as jogadas que Rodrigo ensaia deslocam
sincrónica e diacronicamente as peças em movimentos peculiares, nos quais a aparente
previsibilidade é mero convite à nossa entrada no seu jogo. Na série exposta, Bandeiras,
Rodrigo jogou, se nos é permitido o devaneio, (n)o campeonato nacional. Naturalmente, o que
importava ao artista era (como é, sempre) o apuramento universal de uma dialética, de uma
(contra)posição discursiva no terreno histórico-político-temático-simbólico: pôr em evidência o
“programa filosófico do Galo de Barcelos” como empurrão semiósico e puxão semiótico do
estabelecido, da construção forçada e proliferação consentida de um símbolo tornado
nacional. Hastear estas «Bandeiras» na Bienal favorece o diálogo, atualiza e estende a
discussão.
Dificilmente o imaginário coletivo se descola da Pop-Warhol-Factory. Mas Rodrigo dialoga mais
com Peter Blake e Jasper Johns, entre outros. Ademais, o artista está nas antípodas do
mundano hedonismo das superestrelas que foram iluminando e sendo iluminadas pela Pop.
Acrescentamos que nem as influências da Nova Figuração, no caso de Isabel, nem da Arte Pop,
no caso de Rodrigo, nos parecem emparedar o seu programa ou a sua oficina. Cremos tratar-
se, não de uma militância mas de um recurso, assumindo as ferramentas materiais e
concetuais que melhor poderiam servir a sintonização e a comunicação no contexto cultural e
artístico efervescente do aqui e agora da sua obra nas décadas de setenta e oitenta.
Vemos a exposição destes trabalhos como uma convocatória, não como uma revisita
nostálgica ou uma homenagem (merecida, embora a dispensem os artistas, que nos
habituaram à despretenciosa discrição). Há aqui uma retrovisão, sim, mas com a marcha em
curso, na consciência de que o que fica para trás nos faz falta à frente e que pode, a todo o
momento, motivar a inversão de marcha para resgatar, em suma, o que se mantém atual –
não estaremos ainda (ou mais do que nunca), social, política e culturalmente reféns daquilo
que deu mote e matéria de trabalho a Rodrigo e Isabel nestas obras? Para muitos de nós, este
será o primeiro contacto visual com elas. Voltamos a Bernardo Pinto de Almeida e ao seu aviso
sobre a necessidade de proceder a um levantamento e estudo historiográfico e museológico
da obra dos artistas em questão.
Se pensarmos (n)a arte, tomando emprestadas as palavras de Jorge Wagensberg, como coisa
de um para outro, por contraste com a ciência, na qual o exercício é de um para todos, temos
aqui uma substância ativa em marcha. Mais do que expor objetos a pessoas, o que nos atrai
particularmente na exposição é a ideia de expor as pessoas aos artefactos. Isto nada tem de
original, afinal esta não é senão a condição, digamos, ecológica de todos nós: a relação
corporal (mente incluída) ecossistematizada, aberta à circunstância e à contingência, sensível à
perceção e ao conhecimento, recetiva ao desafio da atualização.
À Isabel e ao Rodrigo
Emílio Remelhe, 2023
In Catálogo da 5ª Bienal Internacional de Arte de Gaia, 2023
O ato de contemplar
Da representação da experiência percetiva e do seu enquadramento num todo consonante para a figuração-síntese dessa experiência – este é o espaço relacional em que compreendo as obras de Isabel e Rodrigo Cabral realizadas nos últimos 15 anos.
Acompanhando esta deslocação de sentido – que corresponde a uma deslocação da análise – permanece (em relação às obras das décadas de 1980 e 1990) a atitude valorizadora da experiência de ver e de contemplar, em tempos múltiplos.
Contudo, a observação encantada e encantatória da natureza, a consideração sobre a relação do ser humano com a natureza em registos de empatia e unidade, deram lugar a outras reflexões sobre a realidade em que o mundo exterior e o mundo interior são analisados sob novos pontos de vista.
Os motivos de inspiração orgânica presentes nos trabalhos anteriores são reescritos em composições de formas geométricas que se substanciam e revelam em contextos de analogias, cinetismos, equilíbrios, completudes. As evocações são conduzidas e/ou transformadas segundo uma organização que cita a forma como presença absoluta. Compreendo-as como figuraçãoes de qualidades da contemplação. As estruturas, antes representadas como parte de uma totalidade, são agora um meio de evidenciar relações de oposição, em desdobramentos sucessivos. Reencontramos feições e conceitos do construtivismo e do neoplasticismo atualizados como indicadores da experiência sensível e das contradições conciliadas – estão ao serviço do distanciamento analítico do ato de contemplar bem como do distanciamento crítico relativamente à sua dimensão não controlável racionalmente (da ordem do envolvimento
sensível).
Como fio condutor, a depuração formal e a eleição da forma cónica. Sendo esta forma definida por uma superfície criada por uma reta que se desloca em torno de um eixo que ela própria que ela própria intersepta num ponto, é a forma qu contém o movimento, na sua
natureza, embora surja, visualmente, como estática. Mas, essa forma que habitualmente visualizamos e consideramos enquanto sólido geométrico, não existe isolada se entendida no espaço: é apenas uma das partes de uma figura que se compreende em relação a um ponto (o
vértice) mas que continua para lá desse ponto, em simetria, e que será limitada por dois planos que intercetam o eixo e a reta em rotação. Na ausência de interceção desses planos, a superfície cónica partilharia do carácter infinito da linha reta que a origina. É, portanto, um só dos elementos que se opõem em relação ao ponto de interceção da reta, em movimento, com o eixo em relação ao qual ela se move. Ou seja, faz parte de si, uma outra forma, simétrica. E faz parte da sua condição plástica ser “capturada” e limitada. Esta dualidade (simetria e limite) está presente, direta e indiretamente, em várias obras. O cone transforma-se em paisagem, lugar de objetivação de relações de reciprocidade e de abertura de possibilidades. É um elemento que liga as várias obras e evidencia a construção poética do conjunto.
Considerado como sólido geométrico e figura no espaço, o cone é tratado, nas várias composições, em contextos de referência às qualidades de caráter dual qua incorpora:
movimento/estatismo; parte/todo; finito/infinito; forma única/forma simétrica. O conceito de simetria é desenvolvido em várias abordagens: a simetria implícita no sólido de revolução (simetria em relação ao plano que passa pelo eixo); a simetria evocada na composição e a simetria das formas refletidas no espelho. Estas diversas perspetivas, na sua articulação, multiplicam as funções de cada elemento na composição de cada obra. A paleta reduzida das cores primárias pigmento (que em conjunto contêm as possibilidades de todas as cores),
corresponde à mesma lógica de seleção de atributos, sublinhando a oposição parte-todo. Quando associadas a superfícies refletoras de aço polido indicam também a sua condição material específica, convocando as cores primárias luz mas afirmando a diferença da sua
condição e comportamento oposto: síntese subtrativa versus síntese aditiva. As circunstâncias em que os significados são ativados tornam-se tema.
A memória dos elementos naturais não é excluída – permanece nas origens das formas geométricas e anuncia o seu carácter de síntese. Do transitório original para a ideia de transitório. O processo de transformação progressivo permite compreender a genealogia dos
trabalhos. A sua inscrição manifesta-se no desenvolvimento de cada elemento no espaço, na modalidade escolhida de união, nos pontos de encontro de planos e linhas, de polimentos e opacidades – aspetos da mesma malha conceptual.
A presença do cone e das suas variações na quase totalidade das obras facilita a compreensão dos objetos escultóricoa como uma realidade acessível e familiar, um equivalente plástico do entendimento das coisas e do mundo: surgem em desenhos que acompanham conversas, concretizando no papel relações visuais correspondentes à cadência e ao sentido dos diálogos. São parte das vivências quotidianas, estão vinculadas às ondulações de emoções, ao fluir das ideias e desejos. Num texto datado de 2007, Isabel e Rodrigo Cabral identificavam
o carácter deste vínculo: “(...) Estas esculturas são instrumentos que registam cada momento interior, quantificadoras do espaço ao qual dão nome, constituem-se como marcas precárias da nossa caminhada, memórias efémeras. A matéria que na atualidade
as constitui simula a perenidade a que não se destinam, elas são objetos fugazes que nos relacionam com a realidade que nos cerca e que a interrogam, cadernos de
apontamentos onde se encadeia o pensamento, notas soltas que organizamos em direção a algures... monumentos ao devir, relógios do tempo”.
Sendo uma das vias de expressão de Isabel e Rodrigo Cabral, as esculturas são interlocutoras do desenho, da pintura e da escrita e devem ser entendidas nessa condição. Fixam pensamentos, esclarecem conceitos, criam atmosferas, sugerem possibilidades diversas de ver. A sua particular natureza física, definidora de espacialidades e reveladora da plasticidade do que a envolve, convoca-nos para encontros em tempos lentos, o olhar repousado em si mesmo.
Maria Leonor Barbosa Soares, 2015
In catálogo da exposição “Do nada para parte alguma”, 2015
A Rodrigo Cabral e Isabel Cabral.
Prova Cega
Ah ... O que importa é a espiral, uma haste fitomórfica, uma germinação, um feto a
irromper, incompleto, recente, de um rizoma, do qual emerge uma porção cónica dissimulada
na suave, feminina curvatura da geratriz.
Importa a exibição da estrutura, desenhada pelos segmentos ligados, soldados,
realçados com luz e sombra. Toda a estrutura se exibe com bocas abertas para o exterior,
expostas, expectantes de toda uma fecundação luminosa. Todos os diagramas soldados são,
assim; mais que um reforço técnico de todas as resistências, assegurando a solidez do recorte
“bidimensional” do pé e do caracol. E há o outro desenho que cada observador pode definir por
e para si; toda uma outra grafia e um outro corpo, contornando, experimentando-se no objecto.
p.13
Há alavancas, suportes, cujo sentido ou orientação é reforçado com o sólido apoio do
vértice de um cone solar. Ou será um dardo, um jacto?
E há um círculo cromado de onde nasce aquela cor, ou o disco talvez seja mais... um
espelho, um pequeno charco sereno... e o meu olhar tão literal, retido na superfície, tão regular,
tão plácida, que Narciso poderia olhar-se e perder-se.
Parece haver dois elementos arquetípicos, com cores muito definidas; um reclinado e
outro vertical, esteando... feminino e masculino respectivamente. O ente feminino emergindo de
um lago simbólico?
p.14
A cúpula celeste mediando entre dois entes?
Há uma indiferenciação categórica na forma, mas não na cor dos cones.. Qual é o
feminino? Tendo a pensar no vermelho
E há as outras perspectivas de tomada de imagem, que permitem fazer um juízo
suplementar e sugestivo da composição.
p.17
Ah... a constância do azul, do encarnado e do amarelo... um suprematismo muito subtil?
E a constância dos cones, alongados ou não... e o prumo... e o oblíquo... e o disco...
p.18/19
Em “Microcosmos”, o filme, há uma criatura que emerge, assim; verticalmente, de um
espelho de água, absolutamente sereno e, a mim, me parece sempre uma noiva; mas não o é.
Não resisti a estabelecer este nexo tão subjectivo, posto que só está na minha memória.
Formas Puras.
Mais uma vez, a fotografia oferece novos ângulos de análise da obra, novas sombras,
novas proporções aparentes.
p.22/23
O apelo irresistível de um certo modo de desenhar e da forma pura.
Um cone reclinado que parece um gracioso e exótico caramujo, repleto de “favos”, a
realizar uma habilidade grácil, acentuada pela relação de dimensões entre os dois volumes,
muito semelhantes; uma foquinha bébé, azul a segurar uma criatura sublimada, apenas um
bico, talvez; talvez um pássaro juvenil.
p.24
Sempre o cone como forma e figura privilegiada.
O intrincado mas desafiador simbolismo das cores. Talvez eu esteja a exagerar, sem
querer.
O amarelo e o vermelho são um casal, um par; todo ele um microcosmo particular.
Haverá algo de erótico nos cones, aprumados ou invertidos? A haver poderá parecer
óbvio qual das cores e qual das posições dos cones definem o género. Porém; estou a
especular, incapaz ou recusando dissociar Isabel Cabral de Rodrigo Cabral, como um todo.
p.29
O disco cromado como uma resultante de uma decantação qualquer. Um funil apoiado
num tripé. Mas, uma forma cuja dimensão tem a escala humana; assim creio. E a resultante é,
certamente; um sublimarégio, invulgar, vital, transcendente.
p.30
Estados de espírito manifestados nas formas; diferenciados
.
O espelho tomado como um exercício narcísico, penso-o de novo.
Uma aparente duplicação, posto que, do outro lado, e vêm-me à lembrança Alice;
olhamos a face que não vemos, posto que a opacidade do objecto dela nos priva totalmente.
E há uma duplicação de um espaço; uma reconfortante ilusão.
Um par, duas personagens...
Duas entidades sustentando uma íntima relação.
O permanente simbolismo das cores.
p.32
Uma ponte cujas extremidades não são aceradas.
Um mediador, um vaso comunicante, um grau superior de simbolismo, no todo. Que
media? Energia? Que discurso veívula?
Um casulo? Uma bainha? Uma vagem segmentada?
Julgo encontrar uma intencionalidade ostensiva, no recurso calculado e regular de tantos
segmentos soldados na estrutura, pois me parece que, apenas por motivos técnicos tal
compartimentação não seria de toda necessária.
Tratar-se-á o objecto, de um filtro de um tempo qualquer, o curso de uma existência,
consubstanciado em subtis escorrências oxidantes fixadas na base?
Será um peixe?
Ah... essa construção fugaz e inconsistente, aparentemente tão sólida... mas só nossa?
Quando tentamos aproximar-nos do Outro...
p.37
Eis , de novo, uma criatura a emergir de um disco, de uma matriz, de um magma...
Desta vez parece-me vagamente inquietante. Porque se exibe crua? Sem cor?
É uma criatura que parece não estar definida, ainda. Definida está a minha estranheza.
p.38/39
Un arc-en-ciel? Quem sabe? A curvatura do arco e, principalmente, os dois “polos”,
induzem um efeito perceptivo de trânsito.
Pode ser uma gota crua, a transitar do manancial para o explícito lago. Mas nada na
obra é tão linear.
p.40
Uma redoma ogival onde evoluem duas criaturass vivas. Parecem mais vegetais que
animais. A cúpula, composta por duas metades; está aberta.
É um lugar onde se operam metamosfoses, repousos, reclusões temporárias.
As proporções.
p.43
O metal como garantia de uma certa perenidade e modelação, mas, também; e
principalmente, como recurso potencialmente gráfico, dependendo das proporções e do
diâmetro de cada “vara” de ferro.
Enorme fantasia, com algo de ritualístico; induzindo à terna crença da capacidade
operativa dos objectos, alimentando a expectativa de uma magia possível... e desejada.
Um teimoso, virtuoso e primordial retorno ao deslumbramento que a percepção do
mundo induz nas crianças e ainda agora Rodrigo e Isabel fazem muito por reconstituir, talvez
de um modo mais totémico, ainda sincrético, se assim posso dizer; mas de forma mais
sublimada, sempre ambicionando o Alto.
As cores, as linhas que os materiais mais estreitos marcam no ar, estabelecem relações
e afinidades com outros poetas. E é bom.
Muito obrigado
3 de Junho de 2014
António Manuel Ferreira da Silva
a partir do livro Escultura Sculpture, 2011
Uma visita em "vernissage".
Tinhamos percorrido um meridiano como quem atravessa a rua.
Estávamos em S. Lázaro. De um lado os cactos que apontavam esse jardim.
Do outro objectos que enfeitiçados serpenteavam suspensos, os espaços que percorriamos.
Eram salas de luz branca agarradas ao espaço de silêncio que as unia.
Era isso mesmo:
Nas salas tanta a sonoridade da luz quanto o silêncio em redor delas. No edifício, retidas vibrações de sons que um coreto só longínquamente escuta.
E por aí começaram as nossas primeiras incursões aos objectos que aqui
evocamos. Devagar, como quem crê de imediato na capacidade inventiva em gesto de solidariedade. E descortinamos mistérios por revelar:
Quedados no objectivo ressalta-nos o poder do papel colado ocultando sabedor modo de designar em correcta geometria, a estrutura das formas que lúdicas se hão-de revelar.
Corda que prende e faz bater o ritmo certo dos passos por bem desenhados.
Caminhar é desenhar ininterruptamente quando a vida tem sentido.
Sabía-mo-lo, Isabel e Rodrigo
Porto, 25 de Fevereiro de 1988
Francisco Laranjo
In Pássaro Azul, Março de 1988
Este fim de século, tem-nos reservado diversas surpresas, impulsionadas pela acelarada dinâmica mutacional das técnicas e dos saberes, as artes têm vindo a reflectir uma caleidoscópica produção de “objectos” e de objectos artísticos, que coabitam entre si,
numa vertiginosa ambiguidade de estilos e citações.
Assim, alargando a base das liberdades, na experimentação e no exercício do discurso criativo, o artista criador oferece-nos, sempre, novos vínculos de elaborada produção que nos ajudam a descobrir o saber “(re)vêr” as formas iniciais e totémicas. Sob o impacto dum enciclopedismo TV, que nos desvenda virtualmente a selva e as megapolis, uma nova sensibilidade se afirma, atenta e ágil, às pequenas simbioses das formas com as forças naturais. Falamos, naturalmente dos recentes trabalhos escultóricos de Isabel e
Rodrigo Cabral, que obedecendo à lógica da simplificação estrutural, nos desvendam o “feérico” dos perfis modelados, quase suspensos em si mesmos, alteados sob feixes piramidais de simbolismo basicamente totémico. Olhando-os fixamente, desvendamos o clamor das multidões ébrias de excitação e sacrilégios.
Silvestre Pestana 88
In Pássaro Azul, Março de 1988
Quem conheça as obras respectivas de Isabel e Rodrigo Cabral, e apesar de alguma esporádica presença antecipadora, não esperaria, decerto, que o trabalho feito em comum pudesse ser tão surpreendentemente outro. Esta diferença, radical e profunda,
levanta questões de que uma consideração não parece despropositada, mesmo se anterior à reflexão que a obra agora exposta justifica.
Com efeito é legítimo interrogar-se se se está perante a recusa das estéticas que vêm pautando o trabalho de cada um, aliás estéticas de que a afinidade é visível, e se tal recusa inclui algum propósito definido. Em relação ao primeiro aspecto não se vê porque uma incursão, por agora, noutra linha de orientação formal seja sinónimo de repúdio pelos percursos cumpridos. Em relação ao segundo parece óbvio que há um propósito e que esse propósito é bem diverso daqueles que as suas obras vinham manifestando, sendo, aliás, essa diversidade que ilumina a necessidade de uma nova linguagem. E nova a todos os
níveis: matérico, morfológico e combinatório. Nova também a nível dos significados de que se faz portadora. Para além de que a autoria se despessoaliza inteiramente, não há vestígios de quem fez o quê.
Converte-se, pois, numa coautoria integral e sem fractura.
Se nos detivermos perante os materiais a que os artistas recorrem pode dizer-se que , tratando-se de matérias com um uso, e até uma tradição, na arte, são materias que não são consideradas, hoje em dia, como matérias nobres e que só recentemente o seu uso se tem tornado mais frequente, nomeadamente no âmbito das formulações tri-dimensionais. Integra-se assim a sua obra num movimento de reabilitação dos materiais a que é conferida uma dignidade artística.
No caso presente a madeira e o cartão. Cartão e madeira sobre que se exerceram tratamentos bem diferentes. A madeira, menos tratada mostrando muito dos seus valores naturais, em tiras finas que unem os outros elementos. O cartão investido de variadas formas, umas de teor biomórfico outras de inspiração fantástica, e até adoptando as formas
de equipamentos de outras áreas de civilização, aparece pintado de modo a sugerir uma iconografia surreal e a promover uma aventura no domínio do imaginário.
A disposição das peças pode variar, é mesmo aleatória, mas os conjuntos podem chegar a dispôr-se em verdadeiras instalações que ocupando as paredes, como relevos, e o espaço determinado por essas paredes, cria envolvimentos a que não pode deixar de reconhecer-se um carácter festivo. Festividade a que não é estranha uma energia lúdica, de um lado contida mas por outro irradiante, energia de que o sinal escolhido são as constelações construídas. Esta festividade, aproxima-nos de certos cultos de feição popular muito arreigados nessa tradição que é a nossa. Sobretudo no norte do País.
Não é que os seus objectos, pela compleição que lhes foi dada, se confundam com o que se pode ver em arraiais ou verbenas portuguesas e por motivos que dispensam juízos. Mas a alegria “infantil” que se desprenda das suas formas e das suas cores, a
comunicação que fomentam e até certas sugestões oníricasque favorecem, fazem-nos pensar que são o fruto de imaginários aparentados.. E uma feérie de propósitos encantatórios e que impulsa na direcção do fascínio, tão gratos à nossa memória colectiva porque são um dado enesquecível da infância deixada, dado que as recuperações
vivenciais são frequentes.
As ambiências em que se constituem aproximam-se das ambiências do sonho. São pois trabalho(s) de que as coordenadas em que assentam nada têm a ver com qualquer "logos" ou com a retina.
São, antes, coordenadas alógicas onde diversas “hedonê” comparecem, assim como estão instruídas por forças irreprimíveis do inconsciente. O resultado é um conjunto de sinais, no todo, e no fim de contas, um sinal, cuja incidência opera nos estratos profundos do espírito e, sobretudo nos estratos onde os encantamentos se forjam e a
génese do ritual enraíza.
Assim, não será uma surpresa encontrar nas formas cultivadas por Isabel e Rodrigo Cabral neste(s) trabalho(s) uma proximidade, assumida mas funcionalmente reconvertida, com o
vocabulário visual de uma das mais notáveis figuras da arte contemporânea de que a obra transmitiu, justamente, uma mensagem que entendeu a vida como uma festa e que se entendeu a si mesmo como um hino, ou um cântico, a essa vida.
Trata-se, como muitos já terão concluído, do catalão, vulto impar do surrealismo, Joan Miró. Joan Miró de que uma parte significativa da obra, aliás aquela que o tornou
inconfundível, é igualmente uma obra com estreitos vínculos com alguma arte popular. Concretamente com os "Siurrel" de Mallorca. E por todos é sabido como a arte popular, é estranha ao cânone figurativo de teor naturalista e exibe um estar no mundo onde o humor e o sarcasmo, a lenda e o quotidiano, e a densidade e a "graça" do humano são traços
dominantes. Sem fazerem destas feições um fim os artistas conseguiram nas sua(s) obra(s) a captação de boa parte do espírito popular que as alicerça e conferir-lhe um cunho que participa da pintura como da escultura e, mesmo, da instalação, que é uma arquitectura embrionária.
À religação processada com a festa portuguesa e com o vocabulário de Miró, Isabel e Rodrigo Cabral juntam uma outra informação plástica, aqui mais ostensiva e talvez menos religação e mais motivo, pretexto. Porque com efeito também toda uma série de elementos,
pela forma e pela sua disposição, é recolhida das tradições de sentido vital e oficinais de algumas tribos do continente americano, nomeadamente da América Norte. Culturas, e artes marginalizadas, sufocadas, laterais, têm sido, nos últimos tempos, redescobertas como consequência da "moda" que fez chegar os artesanatos, ou o que com
eles uma leitura apressada confunde, à ribalta do consumo e da decoração e, mais raramente, do respeito.
Expressões de plenitudes muito outras que as plenitudes da cultura dita, imperialmente, ocidental mas por ela apagadas, nem por isso deixam de mostrar uma
coerência, uma integridade, e uma autenticidade de que os valores não são menores. Se o analista se despir de preconceitos etnocêntricos. Só pelo simples aproveitamento feito, Isabel e Rodrigo Cabral demonstram esse virtualismo sem pre-juízos, um universalismo que
não é o das aparências mas o que consegue reunir as raízes que fundamentam culturas tão distantes, e tão próximas, como a cultura popular portuguesa, a cultura plástica ocidental, através de Miró, e a cultura das realizações quotidianas do índio norte-americano. Os arcos, as cabanas, os ícones, os símbolos, por exemplo.
Conferindo a cada objecto um carácter heráldico e até, por vezes, totémico. Isto é, manifestando por, e com eles, um respeito que nenhuma dessacralização preverte.
A dimensão antropológica, e aqui o termo não pode ser usado apenas na acepção de um saber sobre o homem, impõe-se, sobretudo, como expressão do ser e do(s) estar(es) do homem no mundo.
Na atitude de Isabel e Rodrigo Cabral não se constata qualquer sabor revivalista, com as nostalgias que lhe são inerentes, nem qualquer propósito de qrquiologia artística ou estética.
Pelo contrário são um repertório plástico que demonstra uma atenção dirigida para práticas menos divulgadas ou que , pelo menos, não andam nem nos magazines nem nos almanaques nem nas revistas com que, “mensalmente”, se procura fazer-nos a opinião e determinar quais os modelos que os artistas devem cumprir. E que muitos cumprem de boa-
fé ou matreiramente. Num caso como no outro cedendo o comando da sua criatividade a outros ou procurando disfarçar os limites dela com o sofisma de um internacionalismo oportuno. Internacionalismo é, aliás, dimensão de Isabel e Rodrigo Cabral não desdenham mas que cultivam por vias menos usuais. Os exemplos são aqui, ostensivamente, pontos de
partida que o seu próprio trabalho reconverte, sobretudo pela diferença combinatória e pelas novas cargas funcionais atribuídas. Conjungando nesta exposição materiais e valores heterogéneos, os artistas trazem ainda consigo uma indiferença comercial que não é senão um outro valor. Mais agrassivo porque, como os outros, também
ignora a “doutrina” que alguns “modistas” da opinião apreciam costureirar. Nessa vocação, que os anos não deixam desmentir, de secretariar em versão portuguesa os mecanismos do
comércio estrangeiro. E que nada tem a ver com o estar atento a, ou informado de, Kassel, Madrid, Veneza, Paris, Nova YorK, Paris... Quando o sentido de Berlim, por exemplo só pode ser Berlim.
Joaquim Matos Chaves
In Pássaro Azul, Março de 1988
À força de me sentir assim apenas a necessidade de compreender que alguma coisa possa não ser mais, me surpreendia a passear de olhos no chão, olvidava a frescura dos laranjais e o multicolor voo das borboletas que tanto em vão perseguira...
Foi então que ela, sabedora da minha vontade de partir, me gritou finalmente a senha:
"- Quando encontrares a primeira estrela, vira à direita e segue sempre pela madrugada dentro..."
Pois, estava mesmo decidido, mas onde raio guardara eu a saca dos berlindes?
Paulo Frade
1.2.88
In Pássaro Azul, Março de 1988
A viagem através da galáxia
Em seu delírio azul o espaço diz-nos que é perigosamente leve, prolongando assim o nosso sofrimento. Mas, esta leveza é a nossa salvação, uma vez que se desloca na sela do imaginário, na transparência à superfície do sonho.
Assim, na solidão da galáxia um homem nunca está só.
Trespassemos o espaço e o tempo.
Um novo universo.
O primitivismo nas formas e nas cores aguerridas dotam o "Comedor de Estrelas" dum poder de unir o inanimado ao animado.. Pleno de vitalismo assume inquietações ontológicas exultantes da descoberta da face oculta de toda a condição humana.
As obras representadas, desvelam o desejo do Totem, dos mitos ligados à natureza do xaman.
A desmaterialização alcançada em minúsculos andaimes, suspendendo visões do onírico, são reminiscências de universos íntimos enchos de lirismos cosmológico.
A simplificação destes arquétipos, apontam para o sentimento no seio de uma serenidade espacialista, gerada em centelhas de cor, numa viagem de indefinição entre o imemorial e o próximo.
Maria João Castelo Branco
In Pássaro Azul, Março de 1988
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